quinta-feira, 30 de abril de 2009

Ciúme

O rapaz coloca uma coroa de alho na porta da frente, em defesa do amante. Há um vampiro rondando a casa, uma ameaça. Uma mordida e o amado vira mais um morto-vivo. O outro sorri, esse tipo de coisa não existe. E além do mais, por que haveria de ser eu o mordido, se o sangue também corre em tuas veias?

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Vaca Amarela

Foi a vez da "Vaca Amarela": um, dois, três, e os quatro se calaram. Em acontecimento extraordinário, o calar-se não foi de verbo imperativo, não foi pausa de dor ou de mágoa, luto, ou ausência aflita por palavras. Enfim surpresos, descobrimos o prazer do silêncio, desfrutado sem tensão ou culpa, consentido num acordo de cavalheiros.

Fim do estado de atenção. A interação, sempre constrangida e cobrada, agora se fez da não interação. Livres da obrigação de estarmos a todo o tempo presentes, experimentamos apenas estar. Saboreio o movimento, as copas das árvores, fiações, postes, o sábado e o sol de fim de tarde que quase me aquece. O momento é mágico, não haverá o primeiro a falar.

O pai vai sem pressa, errante. Bom estarmos juntos, dividindo em paz nossas solidões. Capitão e tripulantes, seguimos felizes, numa expectativa ilusória de nunca mais (ter que) chegar, estar para sempre a caminho, todos a lugar nenhum, mas juntos, cúmplices. E em silêncio. Então Beatriz se lembrou de outra brincadeira e acabou comendo toda a bosta da vaca.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O Chamado

Do útero vazio, fez-se a semente do maior amor do mundo, que brotou assim que o menino nasceu. O choro soou em aviso, e o maior amor do mundo tomou de assalto a existência, afogando o mistério daquela mulher. Mais uma Atlantis para sempre perdida, nasceu a mãe de um menino.

Do mal, a cura: a mãe se embriaga de amor. Amor fértil, de não caber em si, transbordou o seio em leite, a dormir toda uma constelação. Amor zeloso, poupa a cria de toda incoerência e mantém o grão coeso, num útero sonhado de ilusões, onde a mãe se esconde. Amor egoísta.

Lá de longe, de um infinito, ouve-se o eco manso de um lamento. É doce e sedutora a voz que vem do esquecimento. Da cidade submersa, a mulher nina o sono do menino. Ai de mim, ai de nós, meu amor. Vai sem mim, deixa em paz, por favor.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O cínico

O cínico não está de um lado, não está do outro, tampouco em cima do muro. Assiste a História trepado no limoeiro e fica lá, azedo. Não pode ser chamado de covarde, porque mesmo os covardes têm a escolha de guerrear, e o cínico não se dá opções. Para sempre seguro, no conforto da sua torre de desdém, não se perde nem se acha, não se contamina do mundo, nem se cura dele. Que tipo de coisa é o cínico, que não está morto, nem vivo? Com a maior cara de cu ele chupa limão e sorri, clínico, descrente do sorriso.

A gente precisa de veias cheias e raízes fortes, apaixonadas, mesmo que pela destruição. Pulsar, crescer aqui dentro e romper o asfalto. Acabar com as linhas retas, desalinhar pudores. Dos cínicos nada nascerá. Estão encubados no mundo estéril e asséptico dos muros cinzas. Não tomam partido nem se comprometem com nada, ficam no corredor atrapalhando a passagem.

Vão pra merda, seus cínicos!

sábado, 11 de abril de 2009

Elevação

Na minha cidade não há estrelas, mas quem liga para o céu quando se tem a tela? Que nos tira daqui de dentro, ou daqui de fora, e nos leva em fuga a nenhum lugar, onde a gente constrói as coisas mais belas. Procuramos sentido e remédio para nossa frágil condição, ser humano nunca há de ser o bastante, nem as perguntas, nem as respostas.

Então ela aparece e seu brilho nos chama com certa urgência. Quem sobrevive à tela volta ao mundo para o legítimo encanto. Fugir de quê, para onde, se coesa ela garante, tudo está em seu devido lugar. Que outra beleza a ser descoberta, que não ela, cheia e soberana, nua como se pela primeira e última vez? Cessemos a busca, o sentido está lá, suspenso sobre os prédios, incógnito num círculo perfeito. A gente não quer mais nada além do aqui e agora contemplado, em hipnose que nos esvazia de pensamentos.

Céu e nuvens agora existem. Serena, aponta o infinito, preenchido dela e de nossa dissolução. Está tudo certo, o todo. Não há medo ou doença, ódio ou frustração. Nem amor, não há, pois não se vê mais fim em qualquer forma de consciência. A lua é. Somos junto com ela. E basta.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Margens

Ela exibe as conquistas, uma a uma, todas elas. Na ponta dos pés, alcança o fundo. Ensaia bananeiras. Bóia de frente, bóia de costas. Por um metro e meio ela nada sem o apoio da margem e, de metro e meio em meio e metro, atravessa a piscina. Leve e frágil. As vezes se enfia toda n'água e eu temo um afogamento, pode estar cansada. Mas ela vem à tona e sorri num flerte. Eu flerto com meus medos. Ela é feliz na água, me rouba dez sorrisos. Estamos bem, não precisamos de mais nada, o céu está aberto. Como é rápida, pródiga a natureza. Não precisamos de mais nada.

Então ensaia mudar de área. Ir até a primeira raia, atravessar. Flutuar nas águas dos grandes, alto mar azul escuro, onde o fundo não acaba. A margem estará lá de apoio, que mal tem? Vá pela margem. Ela vai e atravessa a raia. Sorri, diz que o pai não deixa. Também não vejo problema, o fundo é uma abstração. Ela vai bem, atravessa mais uma raia, não há erro. Mas o medo erra em mim. Da atração pelo abismo, pelo fim de tudo, por um novo início. Um pequeno pavor. Voltemos à ala das crianças? Não quer. Não há motivo, ela vai bem. Mais um pouco, então, para sempre aflito. Ela leve e frágil.

Se a margem abstrai o fundo, a raia tem o mesmo encanto. Posso ir até lá, no meio? Vou pela raia. Lá longe dos meus braços, a um mergulho e dez braçadas, onde o socorro é mais que um grito. Eu seguro na raia, assim ó... E a lógica vence antes que eu possa negar. Mas eu quero que ela fique. Quero que ela vá. E ela vai. Mas é pra ficar agarrada! Se agarra na raia! Não solta. Olha... a raia afunda... Então volta, Beatriz, volta. Mas ela vai. Não há mais sossego. E ela chega lá no meio. Não afoga. Não morre. Sorri num flerte e acena. Era só meu pesadelo. Mais um pouco e eu não aguento. Mando que volte. Ela volta. Por quê? Porque você deve estar cansada. Eu não estou cansada. Que nossas tempestades não fechem os tempos dela.

O "x" da questão

Ela anseia por um assunto, qualquer assunto. Ele se foca na distração que o tira dali. Tão pouco eu consigo ficar em paz com o silêncio, constrangido por nossa afliçãozinha. Dividimos aquele pequeno desespero à mesa.

Então ela conta qualquer coisa e os três se agarram ao qualquer da coisa, como moleques ao pique-esconde. Enquanto houver palavras, estaremos salvos. Nos empenhamos, mas o assunto não ajuda, não dá margem às perguntas coringas, estúpidas. Logo vejo, não demora e voltaremos ao ponto final. Antes que as vírgulas acabem, me preocupo em encontrar aqui dentro qualquer gancho que nos ganhe algumas letras. O que será que será, o que será que será, o que será que será? E o nervosismo traz o branco. O assunto morre. Toca ela pensar em outro.

Mas foi só o aquecimento. Um pouco de álcool, menos pressão e tiramos de letra. Como sempre fazemos. Não demorou muito até que a comida veio e legitimou o silêncio. Comemos orgulhosos. Ufa. Foi um sucesso. Nos esquivamos de mais um encontro. Salvos de nós mesmos.