terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Personificações

De uns tempos pra cá ele menciona o vento. Antes como ameaça, e então com certa ternura. E eu invento que estou lá, abstrato, no meio confuso dos seus sentimentos. Não seria divertida a história? Para o azar da mulher prêmio, dois cavalheiros se apaixonam em duelo. Coitada, tão vaidosa. Eu e ele, um encontro improvável a depender do bom senso dos homens. Mas não para o vento. Improvável seria nele não nos encontrarmos, que tudo toca e varre todo lugar. E se o que há de concreto não lhe serve de freio, que poderes tem as limitações do pensamento? Não há reservas na corrente de ar que nos liga. Daqui ao castelo ele não tem pressa, mas vai ligeiro, de encontro aos teus muros. Então perde a força. Chega brisa na janela e toca tua face, com a mesma boca que me roubou um beijo.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

No deserto em mim

E de repente me re-encontro neste outro lugar, neste velho e conhecido lugar, de onde eu sai e que agora volta a mim, como se pela primeira vez. Essa planitude sem fim, deserto de pedra amarelo, onde nada cede, de onde nada se ergue. Aqui não há sol nem lua, é mais chão do que céu e a gente sente falta ar. Reina uma paz seca, traiçoeira, e a consciência turva na sensação de se estar embriagado em lucidez. Tudo lá fora perde propósito, esvazia-se de sentido, vira simulacro. A felicidade se curva, vergonhosa do colorido, e dá lugar a um vazio devastador, que parece ser a verdade nua do mundo.

Ao passar das horas, desejos, sentimentos e lembranças de outros tempos e espaços se tornam distrações na certeza do que realmente importa: o não importar das coisas. Quando se vê, não há mais nada. Existência presa na não-existência, e a gente dorme para não acordar. O tempo é irregular, tem dia que custa uma vida para escurecer, e então acontece uma sequência frenética de noites e dias, que se fundem e confundem, dando a impressão de que o tempo se dilatou num único e nebuloso momento. Quantas vezes estive aqui? Quando e onde neste lugar? Como se entra e se sai? Não há espaço para memória, todo preenchido do vazio amarelo. Aqui não há brechas e quando lá fora, é como se ele nunca houvesse existido. Olho a minha volta e tudo o que há é a imensidão de desprazer, silêncio, pedras e falta de ar. E então um espelho.

Nenhuma idéia da saída? Não, não vejo nenhuma, somos eu e o deserto, apenas. E o que há pra se fazer aqui? Além de chutar pedra. Nunca havia pensado sobre. O que há pra se fazer? Dormir. Não há nada, mesmo, espera-se sair. Sim, eu me lembro das esperas. Esperar no deserto, é o que se faz aqui. E pelo que se espera? Que um buraco se abra e nos engula daqui? Por acordar em outro lugar. Isto é enlouquecedor. Não posso mais, como acontece? Acontece o que? O outro lugar. Não sei, eu não me lembro! E quantas perguntas, você está enchendo o vazio de palavras. Por que você não senta lá naquela pedra e espera? Vai tomar um pouco de melancolia, de repente acontece, você vai ver. De repente o outro lugar? Sim, de repente. Como num estalo? Isso, num estalo, um sopro de vida ou uma pessoa querida, e então de volta para o outro lado. Então é assim que acontece! Nos fitamos surpresos. Sim! Você me lembrou, obrigado!

Mas é sempre o de fora vindo te buscar?! E eu me calo. Sim, ele tem razão, como não?? Sempre um de fora vindo me buscar aqui nesse lugar. Isso é terrível! Silêncio. E se não aparecer ninguém? E se basta que a vida te tire daqui, por que é que você fica esperando?? O que você sabe pra me julgar com esse olhar?! Um soco no espelho estilhaça a metade de cima. Há um corte entre o dedo anelar e o médio, e de repente o deserto começa a falsear. Sorrio. Você vai nos tirar daqui, vê?! Este lugar já começa a desaparecer! Foi teu sopro, que sorte a minha! A gente não pode ir ainda. Como não? Sabe há quantas semanas estou preso aqui?! Vamos é já! Não, não vamos. A gente não pode ir sem deixar uma pista da saída, caso o deserto caia em ti de novo. Que eu não quero passar outras semanas aqui a espera da morte, nem da sorte. Deixar o que? Não há nada para se deixar ou levar desse lugar. Pois, então, ele ia dizendo, e eu, Esqueça. Alarme falso. Não há mágica de desencanto, era o olhar que desembaçava. Continuamos aqui. E com sangue, ele escreveu no que sobrou do espelho: Pois então vá buscar a vida.