sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Circo

Bebia cerveja e falava groselhas. Numa mão o copo colado e a outra equilibrava a máscara, que escorria no suor do esforço. Lantejoulas pingando, sorriso pregado no rosto e o fardo da euforia.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Na janela

A velha da janela não teve forças para ir ao parapeito. Embrulhada na cama, pestanejou e então sentiu a consciência descolar da carne. Assustada, temeu fechar os olhos para sempre. A existência sussurava por relaxamento e deixar-se levar parecia ser o maior prazer que a vida tinha a oferecer. De novo e mais um susto, entendeu que era isso mesmo. Pensou ser uma pena ter ninguém a presenciar o momento tão raro, olhou para a janela e se despediu da moldura. De olhos fechados reviu todo o que passou, mas não se viu porque tudo que ela fez foi observar. E naqueles instantes, era como se ela fosse apenas o tempo, os olhos do tempo a reprisar a vida que desfilou por aquela janela. Antes de morrer pensou que era mesmo uma pena, sorriu engraçada e dissolveu-se pra nunca mais voltar.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Entrega

Maiores não sabem mais amar como os meninos, amores mesquinhos tem preço e estão pela hora da morte. Amoras sabor desamor aos amantes absortos na falta. Carícias frias, sorrisos ocos, afetos de má formação. A cada lua um aborto, amor nenhum vinga nos corpos cheios de si, amor nenhum fica.

Cisto

O que eu faço contigo, serzinho? Pequeno franzino, verde-musgo-mesquinho, pele, osso e veneno, fica aqui corroendo toda luz que ameaça nascer. Que é que eu faço contigo, serzinho? A azedar o caminho, adoecer o amor, desamar o hospedeiro. Quer encolhê-lo ao teu tamanho, vesti-lo e fazer o que com isso? Como é que eu te desarmo, te esqueço, extirpo? Você precisa morrer.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

silêncio

No olho do furacão quis descrever a vista no centro do nada. E o espetáculo dos pensamentos loucos, delírios soltos, em revoada circular. Quando restei em solo quis dizer do horizonte torto, das raízes expostas, campos e campos de solidão e o frio sem fim. E eram tantas palavras que pouco ou nada diziam do que em mim acontecia, tive sabedoria de me manter calado. E calado segurei.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Estribilho

Godot não veio me salvar, foi tudo o que faltou para que eu pudesse partir. Sobre ombros imóveis, os anos suspensos tem o peso dos anos e a relevância de um dia, esperar foi em vão. No entanto, ao deixar o tronco e as pedras, ganhar o caminho, percebo que o tempo perdido não pesa os passos. De tudo que vivo, sou aquilo que vai, não o que foi, ou que de mim será. Sou feito apenas do que segue comigo: da busca e da falta de tudo.

Godot sempre esteve aqui dentro, é a parte que sempre faltará. Sorrindo com as novas paisagens e passantes que me cruzam no destino, posso rir do ridículo, esperei por mim porque eu mesmo não estava lá, mas sonhando com Godot. Suspendi a busca, esperei pela falta, apenas o tempo existiu.

Me adapto a esse novo peso e experimento a estrada de ombros livres. São como novos o alívio e o suspiro, vou tomando distância dos mortos, do tronco, das pedras, não são parte de mim, ficaram pelo caminho. Pensar em olhar para trás de dá arrepios, repulsa, o medo de fitar o abismo e ser engolido. Sobrei inteiro, ainda que puído, e levo Godot para passear. A vida se ensaia fluida, tenho fome, mal posso esperar pelo encontro de uma cidade.

domingo, 24 de abril de 2011

Miragem

Sonho contigo e miro teu rosto. Você desaparece e ressurge distante, então está aqui e sorri num flerte. Comenta sobre a aridez do clima e fala da guerra, mas estou mais interessado em saber do gosto que você tem. Se eu mordesse teus lábios, seriam mais tesos ou macios? E as texturas das maçãs, nuca, pescoço, o volume de ar a cada expiração. Se teu olhar fosse despido, em que profundidade estaria translúcido?

É fim de tarde e você está ainda mais ruivo. Os botões abertos convidam aos mamilos e eu imagino as cores e temperaturas da tua nudez. Na luz fria da noite, na cegueira do sol do meio-dia, os desenhos que ela imprime no espaço. Os pêlos, cheiros e a vontade de te morder por inteiro, sentir a consistência. Mas até nos meus sonhos você está vestido, protegido de toda destruição.

Encontrados num oásis, até onde se perderia ao meu lado? Solidão, saliva e suor partilhados. E a sede vingada, sorrisos e sussurros. Nu, como dança em combate? Penso em teu rosto na hora do gozo, nos sons que ecoam da tua des-tensão. E depois? Será que sente preguiça ou logo veste as armaduras? À toa na sombra de nossa suspensão, que histórias contaria a passar o tempo, sob o ruído da areia escorrendo lá fora?

terça-feira, 19 de abril de 2011

Refresco

Esprema os limões, um a um, quantos forem. Esqueça o freio, os dedos, vá na palma da mão. Se a barraca apertar, abra uma franquia. E outras três, quinze, um milhão de caminhões-pipa da limonada mais azeda do mundo. Toda aquela gente que você quer mandar pra puta-que-pariu? Espreme também, gota a gota, devolve essa putada pra Mãe Natureza. Para o toque final, use toda delicadeza. Decore o refresco com um lindo guarda-chuvinha de plástico, compõe bem com o clima destes tempos cretinos.

Ufa, quase passou. Quem sabe a vizinha empresta uma xícara de açúcar.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Dor em flor

O “não” é o limite que liberta, se você não se limitar. Não é mais “talvez”, ”um dia quem sabe”, para um tempo distante que pode ou não chegar. Encerra a dúvida e o caminho, convida para outra direção. Há de se aprender a ouvir o “não” e agradecer, enxergar a generosidade. É o “sim” para tudo o que há de vir, se você procurar. Não é?

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Ser, estar

É mais fácil ser sozinho quando nem mesmo eu estou aqui. Tempos estranhos, estar e não fugir de ser, fugir e me constranger, voltar e me re-conhecer. Viver um dia de cada vez, mas aqui colado, junto ao corpo. E caminhar, que é preciso.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Dai-me paciência

Desdém demais passa longe da indiferença, não é minha gente? Mas a gente tem paciência? Não tem. Tem nada à venda, tamo aqui na praça sem banca, e nego vem fazer barganha? Que fazer? Ah, manda tomar no cu e ser feliz, que a gente não tem tempo a perder com gente cretina. Que venha o próximo.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Amorfo

São raras as vezes em que ele me procura, sempre através dos sms de celular. Fico surpreso e contente, quase lisonjeado. Seu número na tela me dá uma pequena satisfação: a invenção de ter sido lembrado no seu dia tão atribulado. As mensagens sempre surpreendem, quem é que espera o destrato casual de um antigo amor? Seus sms nunca me saúdam, nem falam de saudade: são convites diretos ao sexo. E ele oferece o "rabo" do atual namorado, não como brinde, mas condição para a trepada. Só serve se for a três, mesmo porque o terceiro sempre serei eu. Sou eu a prenda. Há tantos corpos desconhecidos por aí, por que foder justo com a nossa história?