Enquanto os moleques do MPL estão comemorando a conquista da redução da
tarifa, eu e muitos outros burgueses da geração Y estamos surpresos.
Surpresos porque sabemos que lutar por causas sociais é lutar contra
moinhos de vento. E a verdade é que não acreditamos nas causas sociais.
Para nós o direito público não existe, o mundo só funciona na esfera
privada (as privadas, por exemplo,
existem apenas em nossos banheiros, como tem lembrado o Laerte). E
ainda, se nem as nossas próprias privações nos movem, que dirá a dos
outros.
Eu e muitos outros burgueses da geração Y aprendemos
nas escolas (e nos sorrisos vitoriosos dos nossos pais) que a grande
conquista foi o mundo neoliberal. Aqui a opressão é um devaneio
comunista, o Estado é fraco, o poder está dissolvido nas multinacionais e
todos nós temos, mais que o direito de consumo, a liberdade para
conquistá-lo. Não precisamos fazer mais que garantir o nosso: mantendo o
dinheiro entrando na conta, tudo estará resolvido. Acreditamos nesses
ensinamentos porque comprovamos todos eles nos percursos dos nossos
caminhos.
Temos orgulho de dizer que, de fato, o suór dos
nossos pais nos garantiu o melhor do mundo privado. Fomos à Europa e lá,
ou em qualquer outro estabelecimento comercial, não encontramos
opressão alguma (Na verdade, antes das consequências dos atos do MPL,
não entendíamos o que isso significa, opressão). O espaço público sempre
foi o asfalto que nos conecta aos lugares onde podemos consumir, não há
muito o que fazer num espaço onde não possamos exercer nossos direitos.
Enxergando pelo microscópio da esfera privada, também nunca
entendemos bem para que serve o direito público e a vida partilhada em
sociedade. As eleições, perdidas ou ganhas, nunca impactaram no universo
pequeno burguês de nossa geração. Com a exceção do incômodo em pagar
altos impostos para a estruturação (não reivindicada por nós) de um
sistema que, entra ano, sai ano, troca seis por meia dúzia e nos parece
sempre igual. Pelo menos, graças a ótica neoliberal, não dependemos da
qualidade da vida pública.
À nossa maneira, assim como nossos
pais, tomamos posse do que é nosso, não por direito, por méritos. Não
fizemos carreira em uma única empresa, como eles, mas em várias. Porque
muitos de nós, burgueses da geração Y, temos horror à estagnação e muita
dificuldade em lidar com figuras de poder e o autoritarismo das
corporações tradicionais. Por isso nos tornamos a nossa própria empresa.
Eis que no trajeto das minhas conquistas, aparecem nas ruas
os moleques do MPL com aquele povo baderneiro, atrapalhando o trânsito.
Autoritários. Atravessando o meu direito de ir e vir para reclamar de um
aumento de vinte centavos na passagem de ônibus. Ingênuos. Burgueses
sem causa, ainda que os tantos centavos lhe fizessem falta, ainda que o
protesto tivesse qualquer relevância nas decisões do governo... Nem
assim, o espaço público é de todos e com as ruas paradas, a vida em São
Paulo fica inviável.
Nada contra o ato de protestar, vivemos
numa democracia e o paulistano já está acostumado com isso. Três ou
quatro vezes por ano se juntam duzentos lunáticos na Paulista
atrapalhando o trânsito. Poderiam utilizar o Sambódromo, já que ele fica
vazio de março à janeiro, e todos teríamos nossos direitos garantidos.
Porque este mês foi difícil, todo os dias não há quem aguente.
Quinhentas pessoas é uma coisa, cinco mil tornam tudo inviável. E para
piorar, a mim e a tantos outros burgueses da geração Y, esses jovens
nas ruas pareciam ser de uma fragilidade política sem precedentes e,
muito provavelmente, massa de manobra de forças ocultas. Varrem as ruas
depredando bancos e patrimônios públicos por nada, como se o uso da
violência resolvesse qualquer coisa. Somos contra a violência, mas
nessas horas concordamos que as ações da polícia são necessárias para
garantir os direitos de ir e vir de todos com segurança.
Só que
para tirar as pessoas das ruas e garantir nossos direitos, a polícia,
paga com o nosso salário, veio com cacetetes e tiros pra cima de gente
que não estava protestando contra o aumento de ônibus. De gente que nem
anda de ônibus, que só estava atravessando a rua. A polícia bateu nos
jornalistas que estavam lá apenas para documentar os atos de
vandalismos. Ficamos horrorizados. E quando fomos tomar satisfação com o
governador, a pessoa que elegemos para garantir pelo menos que os
direitos do mundo privado sejam preservados, diz que é isso, mesmo. Que
ele respeita o cidadão e é assim que se garante o direito de ir e vir
das pessoas.
Nada fazia sentido e as certezas desapareceram
como gás lacrimogênio, o gás que rasgou nossas gargantas e nos deixou
meio confusos. Então estamos todos desprotegidos nas mãos do Estado,
mesmo nós, o burgueses da geração Y. Deu nos jornais que muitos moleques
do MPL, alguns tão burgueses quanto nós, foram presos por porte de
vinagre. Ficamos primeiro com medo e depois indignados porque, há pouco
no jantar, foi com vinagre que temperamos a salada. E na reação em
cadeia dos esclarecimentos, depois do impulso de protestar contra a
proibição do vinagre, refletimos que se formos às ruas, corremos o risco
de voltar sem um olho.
Por isso agradeço aos moleques do MPL
que me mostraram aquilo que era óbvio para todos que vivem fora da
esfera privada, a opressão do Estado existe. E existe justamente para
garantir que os que vivem e se aventuram a botar os pés fora da esfera
privada não a perturbem. Fora dela, nossos direitos não estão
garantidos, mesmo que estejamos pagando caro por eles e isto é um
absurdo. Ora, somos nós que sustentamos a polícia e, se nem os nossos
superiores nos levantam a voz, não será o Estado que virá pra cima da
nossa gente com atitude autoritárias.
Veja que ironia, nos
juntamos às ruas ao MPL contra o abuso da polícia e nos surpreendemos
com a quantidade de burgueses que, como nós, também estavam lá. Não
apenas em São Paulo, por todo o país, juntos com os moleques que
protestavam contra o aumento da tarifa do ônibus. E naquele momento as
causas eram maiores que os vinte centavos, estávamos nas ruas para lutar
pelos nossos direitos de cidadãos, mas a verdade é que não sabemos
exatamente que direitos são estes.
Lembrei das aulas de
literatura, eu achava que os Fabianos à procura das palavras para
combater soldados amarelos eram os famintos, os sedentos. Eis que nós,
os burgueses da geração Y, nos descobrimos sem palavras e sem fome de
nada. Porque todas as nossas necessidades e desejos foram sanados pelo
consumo das coisas e todas as coisas serão acessíveis, é preciso apenas
trabalhar com dedicação. Nossas causas públicas não vão muito além da
insatisfação aos altos impostos e seus prováveis desvios, porque como na
esfera privada, causas só aparecem na vivência das situações, e a rua
sempre foi o asfalto que liga os espaços privados.
Tenho que
admitir que nas ruas, com a voz daqueles moleques, descobrimos os gritos
de indignação. Não estávamos lá pelas causas deles, mas na ausência das
nossas, emprestamos as suas palavras. E na medida que o horror da
repressão saia de nossas bocas, estávamos confusos em pensamentos
desarticulados. Descobrindo as palavras, de nossa
boca saiam sons que ora clamavam por libertação, ora reproduziam a
opressão. E passamos a suspeitar que a repressão e o autoritarismo
também estão em nós. Estamos confusos e de verdade, não sabemos
exatamente de que lado queremos estar. Porque a liberdade e os direitos
daqueles moleques significam o distúrbio do nosso caminho, ao mesmo
tempo que, nas ruas com eles, quase acreditamos na possibilidade de
outros mundos, tão melhores e impossíveis, que eu mesmo não ouso
imaginar.
Com a beleza daquele corpo imenso de gente no asfalto, pensamos ter experimentado isso que eles chamam da vida partilhada em sociedade. Da pluralidade de classes, tipos e estilos, dos imprevistos, o cheiro de perfume misturado com lixo e o suor, as vontades todas reunidas, contrárias e ao mesmo tempo juntas, à caminho de algo maior e abstrato para além do nosso direito de consumir. Não para os moleques do MPL que acreditam nas causas concretas, mas para nós, burgueses da geração Y. Excitados com as possibilidades, também emprestamos
aos moleques algumas palavras, protestamos contra a corrupção e os altos
impostos, os sonhos que temos a dividir com eles. Cantamos o hino.
Depois vieram dizer que estávamos desvirtuando a causa do aumento, mas
ao nosso entendimento, fomos nós que demos à eles a legitimidade de
causa. Porque a questão vai muito além dos vinte centavos.
Mais
tarde compreendemos que divergimos nos entendimentos do sentido de se
manifestar. Se aos moleques do MPL, ir às ruas significa exigir mudanças
concretas às condições sociais, para nós protestar é pedir apenas que
nos deixem sonhar sem ter que pagar por nada. Porque no nosso mundo,
todos os sonhos tem preço e custam mais do que podemos pagar, sonhos que
não são nossos. Não esperem mudanças, eu penso a eles, nós sempre
soubemos que no mundo neoliberal mudanças não acontecem.
Então, depois de muita pressão o prefeito e o governador concretizam as
reivindicações dos moleques do MPL, moleques apoiados por uma massa que
dessa vez não se fez apenas dos esfomeados, mas de muitos de nós,
burgueses da geração Y, sem causas e palavras. Fomos massa de manobra?
Ainda não pensei nas consequências, tenho medo. Medo da possibilidade de
que as minhas certezas tenham virado gás lacrimogênio e arranhem a
minha respiração. Medo de não saber viver em um mundo de incertezas, que
se constrói dos conflitos, na força das vozes coletivas. Eu não sei
viver fora do meu umbigo, no meu mundo, basta meu salário e a esperança
de que ele seja suficiente para comprar os sonhos mais bonitos. Tenho
medo de descobrir que em vez de livres, nós, os burgueses da Geração Y,
estejamos presos na imensidão de uma gaiola onde tudo o que o que há é a
liberdade para consumir.
Não, não sou ingênuo, também me
pergunto da onde virão os R$2,7 bilhões de reais que irão custear essa
revogação. Provavelmente virão de outros desvios, aumentos, forças
ocultas. As coisas não são tão simples quanto os moleques ingênuos do
MPL pensam que é, o sistema é viciado e gira em círculos. O dinheiro da
merenda escolar irá para o transporte e em quatro anos virá outro
aumento. E os moleques burgueses entenderão que as coisas não são tão
simples assim. Eles irão cansar. E tudo o que há, há de permanecer do
mesmo jeito.
(Enquanto houver burguesia...)
lindo, trágico E Real
Há 5 anos
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